COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO

EUCARISTIA À LUZ DOS BASTIDORES DA 1a CORÍNTIOS

 

(Este Artigo está publicado no livro Desafio da cidade grande aos Cristãos, A Primeira Carta aos Coríntios lida por cristãos do século XXI, Rogério Ignácio de Almeida Cunha (org.), Ed. CEBI, São Leopoldo, 2008, pp. 53-74.)

 

Frei Gilvander Luís Moreira[1]

 

1) Introdução

 

As cartas do apóstolo Paulo são os mais antigos escritos cristãos existentes. No entanto, para muita gente, Paulo permanece um autor maltratado, mal amado e mal conhecido entre os cristãos. É maltratado a começar pela liturgia católica: os trechos lidos no decorrer do ano litúrgico são breves estratos em meio aos quais, por vezes, ainda se fizeram cortes; conservam-se as frases teológicas densas, mas os detalhes concretos que poderiam dar corpo ao texto foram sacrificados pelos golpes de tesoura de pastores bem intencionados que, consciente ou inconscientemente, selecionam as passagens que mais servem para justificar a Instituição eclesiástica. É mal amado porque muitos jogam sobre o “apóstolo dos gentios” todos os pecados do cristianismo. Uma mulher, em um artigo do ano de 1975, lançava uma acusação assassina contra o apóstolo a partir do título do artigo: “Saul, Saul, por que nos persegues?”[2] Legalista, misógino, anti-social, conservador... Essas acusações, normalmente, são feitas por pessoas que o conhecem muito mais por meio de lembranças de catecismo e de leituras litúrgicas, ouvidas distraidamente, do que por uma consulta freqüente a seus escritos.

Nas cartas paulinas, se lidas atentamente, observamos que há uma evolução no pensamento de Paulo. De cartas simples, Paulo, vai, passo a passo, desenvolvendo seu jeito de escrever até se revelar como um grande escritor. O mundo Paulino possui um centro que permanece imutável: a ressurreição de Jesus. “Se Cristo não ressuscitou, vazia é o nosso anúncio e vazia também é a vossa fé” (1Cor 15,14). Se pudéssemos resumir toda a mensagem de Paulo em todos os seus escritos, o enunciado seria: Jesus ressuscitou. Assim, a ressurreição de Jesus se torna o cabide onde Paulo pendura toda sua vida, seu testemunho e ensinamento. A partir da ressurreição de Jesus, Paulo e as primeiras comunidades também ressuscitam: renovam as energias, trocam o medo pela coragem, o desânimo pela esperança engendrada na luta contra as injustiças e na convivência comunitária. A experiência da ressurreição do Galileu abre caminho para a ressurreição das comunidades. Com isso Paulo vibra de alegria.

Os escritos paulinos dependem muito das situações das comunidades cristãs às quais são endereçados. O pensamento de Paulo é dinâmico e, ao mesmo tempo, contextual. Logo, jamais podemos abstrair as reflexões de Paulo do contexto histórico – político, econômico, cultural e religioso - a que elas se referem. “Passemos aos pontos sobre os quais me escrevestes” (1Cor 7,1). Eis indício de que Paulo, nas cartas, reflete sobre problemas das comunidades que chegam a ele. Logo entender a quais questões Paulo está respondendo é vital para o bom entendimento das cartas paulinas.

Por volta de meados do século XX, as convicções de que Atos dos Apóstolos constituíam a biografia mais segura da vida, ação e ensinamento de Paulo ruíram-se. Foram pelos ares como estilhaços sob o fogo da crítica moderna. O biblista alemão Hans Conzelmann iniciou este processo. De tanto confrontar as contradições que existem entre informações oriundas de Atos dos Apóstolos e das Cartas Paulinas, os biblistas concluíram que era preciso dar preferência, de modo geral, às cartas paulinas, antes que aos Atos. Criaram o Princípio de Knox que podemos resumir nos seguintes termos: os Atos podem ser utilizados para completar os dados das cartas, jamais para corrigi-los. Ou seja, as cartas paulinas têm muito mais lastro histórico que os textos de Atos dos Apóstolos que são, basicamente, teologia da história e jamais uma simples história.

Com efeito, eu vos faço saber, irmãos, que o Evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo” (Gl 1,11-12). Paulo afirma sua independência em relação ao anúncio da igreja de Jerusalém, liderada por apóstolos. Ele iniciou o processo de evangelização antes de encontrar-se com outros apóstolos, conta ele, e quando os encontra, é em pé de igualdade. Paulo, desde o início, está em consonância com Eldad e Medad, dois profetas do tempo de caminhada pelo deserto. Moisés, estressado e sem conseguir administrar bem a caminhada do povo, ouviu os sussurros de Javé sugerindo-lhe que partilhasse o espírito profético com 70 anciãos, lideranças no meio do povo. Eldad e Medad, duas lideranças, ficaram no meio do povo e não se apresentaram na tenda da reunião no momento da investidura, mas, eis que mesmo estando fora da tenda, isto é, desvinculado da instituição religiosa, eles se revelam como grandes profetas. Despertam ciúmes nas pessoas integradas na instituição. Moisés alerta: “Oxalá todo o povo de Javé fosse profeta e recebesse o espírito de Javé” (Nm 11,29). Assim como Eldad e Medad, o apóstolo Paulo corre por fora da instituição igreja que estava nascendo sob a coordenação dos apóstolos.

A organização de 1 Coríntios reflete a complexidade da situação em Corinto. Paulo trata de uma ampla variedade de assuntos, de forma direta ou indireta. Critica sectarismos, extremismos, pondera, coloca pingo nos “is” e, de forma geral, anima a prática da unidade.

Após lidar com as divisões no interior da comunidade (1Cor 1-4), Paulo cria uma seção tripartida firmemente unida, cujo tema básico é a importância do corpo como o lugar no qual o compromisso com o Cristo se torna real (1Cor 5-6).

“O cerne da vida cristã é a eucaristia”, diz a igreja em diversos documentos e em muitas reflexões teológicas. Hoje temos a eucaristia celebrada de diversas formas, umas mais autênticas e outras que deixam muito a desejar. Já são quase 2 mil anos de história de celebrações eucarísticas. Muita evolução sob vários aspectos e involução, sob outras perspectivas. Muitos elementos históricos, uns positivos e outros negativos, passaram a integrar a celebração eucarística. Voltar às fontes bíblicas e tentar redescobrir o sentido mais próximo do original da ceia eucarística pode trazer-nos inspirações para sermos mais fiéis ao coração da vida cristã e a superar visões distorcidas da celebração eucarística e sobre o jeito de ser e agir da pessoa cristã. Eis o objetivo deste nosso estudo. Para isso estudaremos 1Cor 11,17-34, o testemunho mais antigo que faz referência à eucaristia sendo celebrada nas primeiras comunidades cristãs.

 

2) Celebração da Ceia na comunidade cristã de Corinto

 

O texto diz:

Dito isso, não posso elogiar vocês, porque as suas assembléias, em vez de ajudá-los a progredir, os prejudicam. Antes de tudo, ouço dizer que, quando estão reunidos em assembléia, há divisões entre vocês. E, em parte, eu acredito nisso. É preciso mesmo que haja divisões entre vocês, a fim de que se veja quem dentre vocês resiste a essa prova. De fato, quando se reúnem, o que vocês fazem não é comer a Ceia do Senhor, porque cada um se apressa em comer a sua própria ceia. E, enquanto um passa fome, outro fica embriagado. Será que vocês não têm suas casas onde comer e beber? Ou desprezam a Igreja de Deus e querem envergonhar aqueles que nada têm? O que vou dizer para vocês? Devo elogiá-los? Não! Nesse ponto não os elogio.

De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti para vocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor  Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, o partiu e disse: “Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto em memória de mim.” Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice, dizendo: “Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que vocês beberem dele, façam isso em memória de mim.” Portanto, todas as vezes que vocês comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha.

Por isso, todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor. Portanto, cada um examine a si mesmo antes de comer deste pão e beber deste cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação. É por isso que entre vocês há tantos fracos e enfermos, e muitos morreram. Se nós examinássemos a nós mesmos, não seríamos julgados; mas, o Senhor nos corrige por meio de seus julgamentos, para que não sejamos condenados com o mundo.

Em resumo, irmãos, quando vocês se reúnem para a Ceia, esperem uns pelos outros. Se alguém tem fome, coma em sua casa. Assim vocês não estarão se reunidos para a própria condenação. Quanto ao resto darei instruções quando aí chegar.” (1Cor 11,17-34).

 

À primeira vista, no texto o apóstolo Paulo puxa a orelha da comunidade; alerta que há divisões na comunidade e que isso é incompatível com a celebração da Ceia do Senhor. É um contra-testemunho. Há relações de opressão e exclusão. Uns vivendo no luxo e a maioria na miséria. Isso deixa Paulo indignado. O apóstolo refresca a memória da comunidade sobre o sentido da Ceia deixado por Jesus Cristo: pão e vinho para todos, a ser celebrado para cultivar a memória do que Jesus foi e fez durante sua caminhada terrena. “Quem participa indignamente da eucaristia está se condenando”, alerta Paulo de forma incisiva, pois repete três vezes esse alerta. Os conflitos, as opressões e exclusões eram tão graves que Paulo julgou ser necessário enviar a carta antes mesmo que lá chegasse para, pessoalmente, tratar do assunto cara-a-cara com a comunidade.

Mas não podemos nos contentar somente com o que nos salta à vista pelas primeiras impressões e pela superficialidade do relato bíblico. É fundamental tentarmos resgatar o sentido do texto em si mesmo, antes de tirarmos conclusões teológicas, morais e pastorais sobre 1 Cor 11,17-34. Para isso buscaremos apresentar a Primeira Carta do apóstolo Paulo à comunidade Cristã de Corinto, contextualizando o  texto acima.

 

3) Contexto da comunidade cristã de Corinto

 

Corinto era uma cidade muito importante na Antiguidade, a terceira cidade do império romano depois de Roma e Alexandria; estima-se sua população em torno de 500 mil habitantes, uma grande metrópole para a época.

Paulo, “o apóstolo dos gentios”, chegou a Corinto no início da primavera de 50 d.C. durante sua segunda viagem missionária. Não foi recebido com aplausos. Relações extremamente turbulentas entre Paulo e a Comunidade trouxeram a nu facetas de seu caráter que são retratadas em cores vivas. Embora a carta à comunidade cristã dos Gálatas seja ostensivamente a carta mais autobiográfica, ela permanece na superfície das coisas. Na primeira carta aos coríntios, enfrentando grandes conflitos, Paulo, sem perceber, acaba revelando o seu mais profundo ser, o que faz de 1 Coríntios uma carta profundamente autobiográfica.

Paulo escreveu o maior número de cartas para a comunidade de Corinto. O fato de ter-lhes escrito mais cartas que a qualquer outra comunidade cristã mostra a intensidade da relação de Paulo com os coríntios. O Segundo Testamento contém só duas cartas endereçadas à comunidade cristã de Corinto (1 e 2 Coríntios), mas estas mencionam outras duas, a primeira pré-canônica (1Cor 5,9[3], carta perdida) e a Carta Dolorosa (ou “Severa”; 2Cor 2,4, carta perdida). Há biblistas que sustentam que, originalmente, 2Cor foi composta pela junção de duas cartas: 2Cor 1-9 e 2Cor 10-13.

Paulo tinha à disposição várias fontes de informações sobre a Comunidade dos coríntios: os familiares de Cloé (1Cor 1,11), a carta enviada pelos coríntios (1Cor 7,1) e a delegação composta de Estéfanas, Fortunato e Acaico (1Cor 16,17). Não tendo informações de primeira mão, Paulo teve de enviar Timóteo, que não está relacionado no endereço da carta (1Cor 1,1), para providenciar uma avaliação mais pormenorizada da situação ali (1Cor 4,17; 16,10-11).

Na cidade de Corinto acontecia um imenso volume de comércio. Viajantes de muitos lugares encontravam ali algo parecido como hoje no Porto do Panamá, na América Central. A concorrência era muito grande. Uma minoria lucrava muito e se enriquecia às custas da miséria da maioria dos trabalhadores e do povo.

Na estrada do santuário de Posêidon, na cidade do Istmo, com templo, teatro e estádio, o apóstolo Paulo percebia o cenário dos Jogos Ístmicos, uma das quatro grandes festas pan-helênicas, realizada a cada dois anos no fim da primavera. Durante a semana da festa, os visitantes afluíam em multidão para a área e todos os coríntios não poupavam esforços para servi-los e celebrar com eles. Os primeiros precisavam de tendas para se acomodar e os segundos traziam tendas para expor suas mercadorias. Como a maior parte das populações de cidades onde estão santuários ou portos, os coríntios sobreviviam mergulhados nas trocas comerciais.

Segundo Atos dos Apóstolos, Priscila e Áquila foram anfitriões de Paulo em Corinto (cf. At 18,2-3). Não apenas a versão lucana, mas a própria carta aos coríntios atesta que Priscila e Áquila estiveram em Corinto e eram muito próximos de Paulo (1Cor 16,19). Eram cristãos ex-escravos de origem judaica, que haviam fugido da Itália em 41 d.C., depois que o imperador Cláudio mandou fechar uma sinagoga romana como conseqüências dos contínuos tumultos entre cristãos e judeus que não estavam mais tolerando viver todos debaixo do mesmo teto da sinagoga. Como exilados político-religiosos, Priscila e Áquila, ao acolher o apóstolo Paulo, estavam também correndo o risco de reiniciar as perseguições já sentidas, na própria pele, lá em Roma. Por outro lado, a chegada de Paulo trazia muita esperança para aquele casal e parte da comunidade cristã ali existente.

À medida que a ação missionária de Paulo se irradiava, especialmente, entre os “tementes a Deus”[4], aumentava a ira dos judeus em relação a Paulo, o que tornava cada vez mais difícil anunciar o evangelho nas sinagogas; bastava Paulo abrir a boca para que o mandassem se calar. Aqui já vemos o início dos conflitos enfrentados por Paulo na comunidade de Corinto. “Tementes a Deus” que estavam aderindo à proposta do evangelho se chocavam com os cristãos oriundos do judaísmo.

Parece que, ao chegar a Corinto, Paulo tinha elaborado um cuidadoso plano missionário com uma estratégia para obter resultados rápidos. Paulo percebeu que a comunidade nascente precisava de um núcleo sólido de membros que tivessem uma certa posição econômica para poder sustentar o trabalho. Justo, segundo o relato de Lucas (At 18,7) faz parte deste grupo. A carta aos romanos inclui saudações a “Erasto, ecônomo da cidade” (Rm 16,23). Ele é o único convertido cujo cargo civil Paulo menciona, por causa do status muito elevado ou simplesmente para se diferenciar este Erasto de outros (2Tm 4,20 e At 19,22). Erasto fora escravo, mas conquistou a liberdade e conseguiu prosperar no ambiente fortemente competitivo de Corinto, adquiriu muitos bens, o que tornou possível a ele ocupar um cargo público. Todavia, o status econômico trazia insegurança, pois ele tinha sido escravo e, talvez, sentisse que as pessoas o viam, não apenas como o “ecônomo da cidade”, mas como um ex-escravo. Esse era um conflito experimentado na comunidade de Corinto: os libertos, ex-escravos, mesmo tendo conquistado ascensão econômica se sentiam, em parte, discriminados, pelos livres, os cidadãos gregos. Logo, quando Paulo alerta para as discriminações que aconteciam na comunidade não está se referindo apenas a opressão econômica, mas a uma gama de diferenças culturais, históricas, religiosas, étnicas, patriarcais e antropológicas, que eram motivos de incompreensões e discriminações. Por exemplo, a diaconisa Febe de Cencréia, embora rica o bastante para ser benfeitora de Paulo e de muitos outros (Rm 16,2), era vista antes de tudo como mulher, com as desvantagens sociais e políticas que seu gênero pressupunha. Febe sentia-se discriminada por ser mulher em uma sociedade patriarcal e machista.

Um fator que tornava o Evangelho atraente para essas pessoas que sentiam algum tipo de discriminação era que Jesus Cristo personificava o paradoxo em que viviam. Jesus tinha sido condenado injustamente e sofrido pena de morte, mas ressuscitou. Da fraqueza aparente do amor testemunhado pelo nazareno irrompe uma força infinita. Assim podiam entender o Evangelho revelado em Jesus Cristo, bem como na pessoa de Paulo, de que o “poder se perfaz na fraqueza” (2Cor 12,9). Os poderosos têm o poder da força e do dinheiro, mas não têm o poder do amor que é a força e a luz divina que move as minorias abraâmicas na vivência do evangelho.

O cristianismo entendia a ambigüidade das pessoas discriminadas em Corinto e, ao mesmo tempo, apresentava-lhes um projeto de sociedade comprometida em reconhecê-las como pessoas, todas igualmente valiosas e dignas. Embora a realidade fosse contraditória e permeada de relações de opressão, por diversos motivos, havia na comunidade cristã uma utopia que bradava “todos têm a mesma dignidade”, ninguém pode ser discriminado. Essa perspectiva cativava uma diversidade de pessoas.

 

4) Situação social dos membros da comunidade cristã de Corinto

 

 Não há entre vós nem muitos sábios aos olhos dos homens, nem muitos poderosos, nem muita gente de família distinta” (1Cor 1,26). Os “sábios” são os instruídos e, em especial, os com fama de prudência e moderação, que demonstram sólida capacidade crítica na política e/ou no comércio. Os “poderosos” são os influentes, os que têm opinião de peso na administração pública da cidade. Os “de família distinta” são os nascidos na aristocracia da riqueza criada pelos libertos enviados pelo imperador Júlio César para fundar a cidade de Corinto.

Com admirável concisão, Paulo evoca uma elite privilegiada que exercia sobre Corinto um impacto bastante superior à maioria da população.  A maioria dos membros da comunidade não era de pessoas ricas, mas também não era de  excluídos. Entre os membros não citados das “casas” de Estéfanas e Crispo, é muito provável que houvesse escravos (1Cor 7,21). Embora em desvantagem do ponto de vista legal, esses escravos domésticos com freqüência gozavam um padrão de vida e de educação negado aos nascidos livres e podiam almejar exercer seus talentos treinados em liberdade. Somente então teriam de prover às próprias necessidades; o escravo tinha garantia de casa e comida. A sorte dos escravos que trabalhavam nos campos das grandes propriedades ou nas minas era completamente diferente. A severidade que tocava as raias do sadismo do qual eram vítimas não pode ser considerada tratamento normal para os escravos domésticos, embora, claro, houvesse exceções. “Para sua casa trêmula, era um monstro, nunca tão feliz como quando o torturador estava em ação e algum pobre escravo que roubara um par de toalhas estava sendo marcado com um ferro em brasa[5]. “Varas foram quebradas nas costas de uma vítima, a chibata deixou listras de sangue em outra, uma terceira foi açoitada com um chicote de nove tiras. Algumas mulheres pagam um salário anual aos açoitadores[6]. Isso era reservado aos escravos nos campos das grandes propriedades ou nas minas.

Para compreender bem as divisões que são reprovadas por Paulo na comunidade de Corinto, discriminações trazidas à tona no momento da celebração da Ceia Eucarística, não podemos nos apegar só às  diferenças formais entre escravos, libertos, poderosos, sábios e influentes, pois os escravos domésticos eram bem melhor tratados que os escravos da zona rural; os libertos, mesmo tendo conquistado ascensão econômica, traziam consigo mesmos as marcas da história pessoal de escravidão.

Conhecemos 16 membros da comunidade cristã de Corinto pelo nome. Dois deles (Priscila e Áquila) são marido e mulher. Duas mulheres (Priscila e Febe). Seis são explicitamente de origem judaica (Áquila, Crispo, Priscila, Sóstenes, Jasão e Sosípatro). Dois são, com certeza, de origem pagã (Erasto, Justo). A referência a seis pessoas de origem judaica e a duas de origem pagã pode nos levar a inferir a predominância de fiéis judeus na comunidade. Entretanto, qualquer dessas extrapolações é categoricamente excluída pelo tipo dos problemas com os quais Paulo tem de lidar em 1 Coríntios - apelo a tribunais pagãos (6,1-11); freqüentação de prostitutas (6,12-20); casamento e sexo (1Cor 7); participação em refeições de templos pagãos (1Cor 8-10) – e por suas declarações explícitas de que a maioria da comunidade tinha sido idólatra (6,10-11; 8,7; 12,2). Pela maioria dos problemas tratados na 1 Coríntios percebemos que são oriundos da cultura gentílico-pagã. Enfim, o grupo predominante na igreja coríntia era formado de pagãos de diversos graus do meio da escala social. Só faltam o topo (grandes magnatas) e a parte inferior (escravos do campo) dessa escala. Os cristãos de origem judaica eram minoria, mas pelo menos dois (Crispo e Sóstenes) se destacavam na comunidade.

 

5) Uma comunidade turbulenta

 

O potencial para divisões e conflitos na Comunidade de Corinto é evidente. Muitos membros só tinham em comum o cristianismo. Diferiam muito em instrução, recursos financeiros, formação religiosa, história cultural, habilidades políticas e, acima de tudo, em seus sonhos. Uns, frustrados pelo modelo de sociedade imperial, viam na Comunidade novas oportunidades de desenvolver seus talentos. O espírito competitivo de Corinto, grande cidade portuária, contagiou a comunidade desde suas origens. Muitos entravam para a comunidade, mas levavam consigo os falsos valores da sociedade pagã, da cultura grega e a sede de poder do império romano.

 

6) Diversas tendências de evangelização

 

Segundo At 18,24-28, o missionário Apolo veio de Éfeso para Corinto pouco depois da partida de Paulo para Jerusalém no fim do verão de 51 d.C. Ao dizer “eu plantei, Apolo regou” (1Cor 3,6), Paulo confirma, de modo explícito, que Apolo exerceu em Corinto uma ação missionária posterior à dele. Apolo falava com espírito cheio de fervor (At 18,25), era versado nas Escrituras (At 18,24) e tinha o dom da linguagem edificante (cf. 1Cor 1-4).

Apolo se deu bem no ambiente competitivo da comunidade cristã de Corinto. Paulo proclamou um Cristo crucificado como exemplo de humanidade autêntica (1Cor 2,1-5) e não viu necessidade de nenhum desenvolvimento especulativo. Apolo cativava mais pela eloqüência e, ao usar os métodos de interpretação e a estrutura filosófica de Fílon, proporcionou a realização intelectual, construindo uma rica síntese dos elementos que Paulo fornecera. Assim, de fato, regou o que Paulo tinha plantado.

Além dos grupos pró Paulo e pró Apolo, havia também um terceiro grupo que proclamava adesão a Cefas (1Cor 1,12). Eram judeus convertidos que achavam difícil integrar-se em uma comunidade de predominância pagã.

Eu sou de Paulo...” Essa fórmula, provavelmente, sugere que os que se entendem pertencentes a facções dentro da comunidade agem de forma infantilizada (cf. 1Cor 3,1-4) ou como escravos (1Cor 7,23). Se essa era a maneira como os coríntios os entenderiam, os lemas não são autodesignações, mas uma afronta deliberada por parte de Paulo, que usa o expediente retórico de personificação para indicar um julgamento fortemente condenatório.

O fato de ser também uma grande comunidade ajudou na formação de três grupos – de Paulo, de Apolo e de Cefas. A comunidade não cabia em uma única casa. Dois dos 16 membros conhecidos eram casados (Priscila e Áquila) e uma mulher era solteira (Febe). Devemos presumir que os 13 restantes eram casados. Dois tinham se convertido junto com suas casas (Estéfanas e Crispo). Havia uma elite privilegiada (1Cor 1,26). No meio da comunidade em Corinto, havia os “ricos” e os “pobres”, e os primeiros preocupavam-se pouco ou nada com os segundos (1Cor 11,22). Talvez os ricos e mais bem educados eram partidários de Apolo e os de classe baixa preferiam o apóstolo Paulo. 

Cloé, uma rica comerciante de Éfeso, e seus familiares entregaram a Paulo um relatório sobre a situação da comunidade cristã em Corinto. Realçaram o grotesco – um casamento incestuoso (1Cor 5,1-8), embriaguez na Eucaristia (1Cor 11,17-34) -, mas havia outras observações, em especial sobre as divisões internas, e Paulo ficou convencido de que a situação em Corinto era muito mais complexa que qualquer coisa com a qual lidara até então. Sua reação imediata foi enviar Timóteo para investigar, uma vez que ele já tinha cumprido missão semelhante em Tessalônica (1Ts 3,1-6).

Enquanto Timóteo estava viajando para Corinto, eis que uma delegação composta por Estéfanas, Fortunato e Acaico (1Cor 16,15-17) chegou de Éfeso trazendo uma carta, em que a comunidade de Corinto pedia o parecer de Paulo sobre alguns assuntos (1Cor 7,1). Paulo tinha, agora, informações seguras para poder escrever 1 Coríntios. Foi o que fez antes de 2 de junho, a data de Pentecostes (1Cor 16,8), em 54 d.C.

As idéias filosóficas de Fílon faziam uma distinção entre homem celeste e homem terreno, o que gerava duas formas de encarar o corpo. Para os espiritualistas presentes na comunidade “o corpo é mau por natureza e traiçoeiro para a alma”, visto que “o homem terreno era amante do corpo”. Se o corpo é “um conspirador contra a alma, um cadáver é sempre uma coisa morta”. Essa concepção levava os espirituais a negarem a ressurreição de Cristo (1Cor 15,12), pedra de toque do anúncio de Paulo. Talvez aceitassem apenas um “Senhor da glória” puramente espiritual (1Cor 2,8). Paulo resume a atitude dos espiritualistas para com o Jesus histórico na frase chocante: “anátema a Jesus” (1Cor 12,3). Eles achavam repugnante a idéia de um salvador crucificado.

A importância que alguns coríntios atribuíam à glossolalia (1Cor 12-14) inclui-se nesse padrão, quando reconhecemos que, para Fílon, a posse do espírito profético expressava-se em êxtase, loucura e frenesi inspirado, pois “a mente é desapossada à chegada do espírito divino”. Paulo contesta fortemente a prática de orar em línguas. Aqui também o grupo dos espiritualistas é criticado. Apolo deve ter sido mal interpretado pelo grupo dos espiritualistas. A briga de Paulo era contra as implicações práticas da interpretação que davam a Apolo, não com a personalidade ou o ensinamento dele (1Cor 16,12).

 

7) Elogio à profecia e crítica ao dom de línguas

 

Nas cartas paulinas constatamos que no seio das comunidades há uma diversidade de dons que deve ser articulada pelo cimento que é a cooperação solidária. Isso é ótimo, pois o Espírito não se deixa encurralar e não pode ser engaiolado; Sopra aonde quer, pra onde quer, é livre, liberta e tem sede de liberdade. Paulo reitera diversas vezes: "Não percam a liberdade cristã!" (cf. 2 Cor 3,17). "Não entristeçam o Espírito Santo!" (Ef 4,30).

O apóstolo Paulo percebeu que existia nas comunidades uma dificuldade de conviver de modo sadio com a diversidade de dons. Aí Paulo pontua bem a diversidade de dons recordando que existe uma ordem de importância. A comunidade cristã não pode cair no relativismo de "tudo é igual a tudo", ou no "devemos acomodar-nos a tudo".

Paulo nos recorda que em primeiro lugar estão os apóstolos, entendido em seu sentido original e etimológico: apóstolo/a é aquele/a que é enviado/a por Deus, é um/a missionário/a, um/a porta voz de uma mensagem do Deus solidário e libertador. Em segundo lugar estão os profetas, aqueles que ouvem os sussurros e os cochichos de Deus nas entranhas da realidade. Em terceiro lugar, os mestres, aqueles que devem ensinar o verdadeiro evangelho de Jesus, mas ensinar pelo testemunho e de preferência, através da pedagogia da maiêutica: conversando, dialogando e assim ajudando os outros a partir de idéias e práxis libertadoras. Somente no final da escala vem o dom das línguas (cf. I Cor 12,28), que é “tolerado” por Paulo e jamais incentivado.

Em 1Cor 13,1-13, Paulo faz elogio do amor para nos mostrar que relações de amor devem ser a coluna mestra da vida das comunidades e Igrejas. Paulo nos alerta: "Desejem os dons do Espírito, principalmente a profecia, pois quem profetiza fala às pessoas, é entendido, edifica, exorta e consola a comunidade. Aquele que profetiza é maior do que aquele que fala em línguas. Quem fala em línguas edifica somente a si mesmo, fala só a Deus” (cf. 1Cor 14,1-6).

    O Espírito de Deus é fascinado pelo novo, adora variar, é “criador e criativo!” Está presente já antes mesmo da criação (Gn 1,1-2), ansioso para manifestar toda sua força, beleza e vitalidade inovadoras. Entre as mais diversificadas ações do Espírito que transforma e liberta destacamos alguns exemplos no Primeiro Testamento bíblico:

a)            Ao Espírito de Deus, até o Faraó se submete (Gn 41,38ss);

b)            O Espírito empurra e encoraja para profetizar (Nm 11,25-29);

c)            O Espírito anima e fortalece para enfrentar e combater o mal (Jz 15,14; II Cr 20,13-15);

d)            O Espírito abre a mente e dá inteligência (Jó 32,8; Sb 1,5);

e)            O Espírito capacita e envia para a missão de libertar (Is 61,1-3; cf. Lc 4,18-19).

              Paulo e seus companheiros fundam e desenvolvem comunidades proféticas a partir da ação do Espírito. Quase todas as vezes que a Bíblia diz: "desceu o Espírito de Deus sobre...", diz também que os atingidos pelo Espírito de Deus começam a profetizar (cf. Nm 11,29; At 19,4-6). A profecia é fruto da inspiração do Espírito Santo, o divino que irrompe do/no humano. Logo um bom critério para saber se estamos vivendo uma verdadeira experiência no Espírito de Deus é nos perguntar: Estamos nos tornando mais profetas ou profetisas? Se a maioria das pessoas que diz "falar em línguas" fosse também profetas, teríamos um maior número de mártires (testemunhas) do evangelho e o Brasil já estaria melhor transformado em razão  de tanta profecia.

 

8) Equívocos de Paulo

 

Paulo acabou escolhendo uma estratégia infeliz ao não entender as aspirações legítimas dos espiritualistas. Ele adotou o riso sarcástico como arma de desqualificação do adversário. As dificuldades na interpretação de 1Cor 2,6-16 são consideradas tão graves que a passagem tem sido desprezada como interpolação pós-paulina. Paulo faz um jogo intelectual cruel com os adversários. Ele se apropria de algumas das expressões mais queridas do vocabulário dos espiritualistas e dá-lhes um sentido radicalmente oposto ao pretendido por eles. Concorda que eles são “espiritualistas” e possuem “sabedoria”, mas o espírito deles é “o espírito do mundo” e a sabedoria é “sabedoria deste mundo” (1Cor 2,6). São maduros, mas são criancinhas (3,1). São juízes, mas incompetentes (2,14).

As perguntas retóricas de um sarcasmo feroz com as quais termina esta passagem inicial (3,3-4) reaparecem em 4,7: “Quem te distingue? Que tens que não hajas recebido?” O tom desdenhoso intensifica-se à medida que Paulo continua a zombar deles, dando sentido literal à linguagem espiritual que usam.

É provável que os espiritualistas viessem predominantemente da parte mais rica e mais instruída da comunidade de Corinto.

A dureza de Paulo em seu tratamento dos espiritualistas deve tê-lo diminuído aos olhos das pessoas mais sensíveis da comunidade, que achavam que ele fora longe demais. Os espiritualistas, profundamente ofendidos, se tornaram inimigos implacáveis de Paulo. Não muito depois da chegada da  carta em Corinto, em 54 d.C., acolheram os que Paulo temia como a maior ameaça a seu ministério: os judaizantes de Antioquia que haviam perturbado as comunidades da Galácia.

Para Paulo o reino de Deus não consiste em palavras, mas em ação (1Cor 4,20). Embora digam as palavras da Ceia eucarística, é certo que sua falta de amor ao próximo, de partilha, impede que aquela refeição seja a ceia do Senhor (1Cor 11,20). As relações interpessoais na comunidade são o fator decisivo. Paulo recusa a governar o comportamento moral dos membros da comunidade. Paulo não proíbe isso ou aquilo, mas diz o que pessoalmente faria nas mesmas circunstâncias: “Eis por que, se um alimento pode fazer cair o meu irmão, eu renunciarei para todo o sempre a comer carne, de preferência a fazer cair o meu irmão” (1Cor 8,13).

 

9) A comunidade é o corpo de Cristo

 

Na primeira parte da carta aos Coríntios, Paulo apresenta quatro vezes o nome “Cristo” em contextos nos quais ele não pode ser entendido como a pessoa Jesus de Nazaré (1Cor 1,13; 6,15; 8,12; 12,12); só pode ser uma designação da comunidade. Mas em que sentido a comunidade é “Cristo”? Os membros da comunidade são o meio pelo qual o Senhor ressuscitado atua no mundo. Eles são os ouvidos, os olhos e as mãos dele. O que Jesus fez e ensinou quando estava fisicamente presente, eles agora fazem e ensinam, pois a força e a luz divina que irradiava no Homem de Nazaré, agora, está na comunidade nos seus membros que, não apenas seguem Jesus Cristo, mas são, na prática, outros Cristos. Inácio Ellacuria dizia que Dom Oscar Romero foi (e continua sendo, mesmo depois da morte, enquanto ressuscitado) um enviado de Deus para libertar seu povo. Oscar Romero dizia aos cristãos perseguidos pela ditadura militar em El Salvador: "Vocês são Jesus Cristo, aqui e agora. Vocês são enviados de Deus para salvar e libertar nosso povo."

Ora, vós sois o corpo de Cristo, e sois os meus membros” (1Cor 12,27). Coletivamente, os coríntios são “o corpo de Cristo”, enquanto, individualmente, são seus membros. Santo Agostinho, ao distribuir a hóstia consagrada, dizia para a pessoa cristã que a recebia: “Tu és o corpo de Cristo”. Ou seja, na eucaristia, não apenas os membros da comunidade recebem o corpo de Cristo na hóstia consagrada, mas acontece o encontro de vários corpos de Cristo: os das pessoas que participam da celebração e o corpo de Cristo presente na eucaristia partilhada.

Paulo, ao chamar a comunidade de corpo de Cristo, identifica-a como a presença de Cristo no mundo. Cristo ressuscitou, prova disto é a existência da comunidade cristã. A comunidade cristã constitui uma unidade orgânica. Um cristão independente é tão impossível quanto um braço ou uma perna independentes. Relação de amor são imprescindíveis para a constituição da comunidade. “Se me falta o amor, nada sou” (1Cor 13,2). Amar e ser amado faz parte da essência do cristianismo e é constitutivo da existência do membro da comunidade. “Vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20), gostava de dizer “o apóstolo dos gentios”.

A visão paulina da comunidade como unidade orgânica tinha implicações de longo alcance para seu entendimento da moralidade cristã. Assim, ele diz aos litigantes: “É para vós uma decadência terdes processos entre vós” (1Cor 6,7). Um cristão processar outro equivale a demandar judicialmente consigo mesmo, porque ambos são membros de um só corpo. Faria sentido o braço processar a perna? Se o processo tivesse êxito, ambos não perderiam? Na mesma perspectiva, Paulo não aceita que o que é correto em si (por exemplo, comer carne oferecida a ídolos) seja diretriz moral adequada para os membros da comunidade. As perguntas que a pessoa cristã deve fazer são: essa atitude planejada dará poderes aos outros ou os condenará? (1Cor 8,9; 11,29). Edificará a comunidade? (1Cor 14,3-5).

 

10) Paulo e o ministério das mulheres

 

Paulo achava perfeitamente natural que as mulheres fossem ministras da Igreja em igualdade de condições com os homens. Reconhecia seus dons como frutos do Espírito, aos quais ele não tinha nem o desejo, nem a autoridade para se opor. Entretanto, considerando o mundo androcêntrico em que ele vivia, seria surpreendente se não houvesse movimentos de oposição entre os que não percebiam como o evangelho era radical. O texto de 1Cor 11,11-12 é a primeira e única defesa explícita da completa igualdade das mulheres no Segundo Testamento. Diz assim: “Portanto, diante do Senhor, a mulher é inseparável do homem, e o homem da mulher. Pois, se a mulher foi tirada do homem, o homem nasce da mulher, e tudo vem de Deus”.

Paulo derrotou o argumento tradicional da prioridade cronológica do homem na narrativa da criação, salientando que a prioridade cronológica da mulher no nascimento de um homem também faz parte do plano de Deus para a ordem de sua criação (1Cor 11,12). Esse argumento elementar funciona como prova para o princípio: como cristãos, “a mulher é inseparável do homem e o homem da mulher, diante do Senhor”. Aqui, a questão é a igualdade, não a complementação. A força e a clareza desse discernimento significam que a diretriz para as mulheres se calarem na igreja (1Cor 14,34-35) não foi escrita por Paulo. Foi acrescentada mais tardiamente para harmonizá-la com a passagem não-paulina de 1Tm 2,11-14.

 

11) Acontecimentos após a leitura da 1a carta aos Coríntios em Corinto

 

Paulo acabou fazendo uma visita surpresa à comunidade de Corinto, após receber o relatório de Timóteo falando da reação da comunidade à carta escrita por Paulo (1Cor). “Ora, imaginando que eu não voltaria a estar conosco, alguns se incharam de orgulho” (1Cor 4,18). Isso revela a reação emocional de Paulo a sua súbita imagem nítida do que Timóteo poderia passar.

O que aconteceu em Corinto?  Alguns indícios são revelados na 2a carta aos Coríntios (cf. 2Cor 2,1-11; 7,6-16). Os fatos estabelecidos dizem respeito à ofensa e também à reação da comunidade:

1)      um único cristão, provavelmente um visitante intruso vindo de Antioquia (2Cor 2,6; 7,12) fez grave ataque (2Cor 2,1.3.4) à pessoa de Paulo (2Cor 2,5.10);

2)      os membros da comunidade não manifestaram a lealdade pessoal e o entusiasmo que Paulo esperava (2Cor 7,12). Eram culpados o suficiente para sentir necessidade de arrependimento (7,9). Contudo, convenceram Tito de que eram inocentes no caso (7,11).

 

Timóteo trouxe a notícia de que os judaizantes estavam muito à frente de Paulo e já haviam entrado em Corinto. Em Corinto, Paulo já tinham os espiritualistas contra ele. Era muito provável que os judaizantes seriam bem recebidos pelos espiritualistas, irados com o evangelho proposto por Paulo. Este viajou angustiado conjeturando o cenário hostil que encontraria em Corinto. Se perdesse a comunidade de Corinto, os adversários judaizantes teriam completado o cerco, e a comunidade de Éfeso, no centro, não sobreviveria muito tempo. Todo o futuro do cristianismo no mundo pagão estava em jogo. O confronto em Corinto com o chefe dos judaizantes foi, sem dúvida, dramático. Paulo sentiu uma humilhação profunda, pois foi acusado de desonesto e sua autoridade foi contestada da maneira mais radical possível. Contudo, o que mais perturbou Paulo foi a atitude de grande parte da comunidade dos coríntios. O fato de não lhe darem apoio atingiu-o profundamente. Paulo já estava escaldado do confronto com os judaizantes na comunidade de Antioquia. A Comunidade em Corinto se manteve neutra, não entendia a gravidade do que estava em disputa. Paulo se sentiu desapoiado. As feridas abertas causadas pelo modo como Paulo tratou a comunidade de Corinto ainda estavam abertas e sangrando. Foi dolorosa a experiência em Corinto.

Embora decidisse não voltar a Corinto, Paulo concluiu que devia uma explicação aos cristãos de Corinto. Não era uma carta fácil de escrever, pois devia ser uma carta dolorosa. “Foi com a maior dificuldade e de coração oprimido que vos escrevi em meio a muitas lágrimas” (2Cor 2,4). Paulo concentrou-se exclusivamente em suas relações com os cristãos de Corinto (2Cor 2,9; 7,12). Esta carta se perdeu.

O entusiasmo inicial da comunidade cristã de Corinto pela coleta para os pobres de Jerusalém evaporara-se na atmosfera acalorada das disputas faccionárias na comunidade. Profundamente ofendidos pela maneira como haviam sido expostos ao ridículo em 1 Coríntios, os espiritualistas, potencialmente os maiores doadores, revidaram, recusando-se a tomar parte em um projeto tão caro ao coração de Paulo.

 

12) Condições materiais em que se davam a Ceia

 

A Ceia do Senhor, descrita em 1 Coríntios 11,17-34, com o passar do tempo se transformou em missa ou em celebração eucarística. A Ceia era realizada em casas particulares. Não se limitava a uma celebração ritual; o rito era integrado numa verdadeira refeição ao longo da qual o presidente da mesa abençoava o pão e o cálice, como o próprio Jesus o fizera durante a ceia, na noite da Quinta-Feira Santa.

O que, de fato, estava acontecendo na comunidade cristã de Corinto? Que tipo de divisões? Por que o individualismo? Uns se embriagam enquanto outros passam fome. Por quê? Quais as condições materiais que viabilizavam tanta traição ao sentido original da Ceia do Senhor?

As reuniões aconteciam em casas particulares, normalmente pertencentes aos cristãos mais ricos. O número de cristãos, provavelmente, já chegavam a algumas centenas. Logo, não existia “a comunidade” de Corinto, mas havia “as comunidades” de Corinto, pois havia muitas: uma que se reunia na casa de fulano, outra que se reunia na casa de beltrano e assim por diante. No total, provavelmente, uma dezena de lugares diferentes.

Reunir algumas dezenas de pessoas na própria casa significava não poder juntá-las todas no mesmo cômodo. As casas dos ilustres eram construídas à moda romana. As acomodações davam para um pátio central, parcialmente coberto, o atrium, do qual, uma parte do espaço era ocupada por um recipiente destinado a colher as águas das chuvas[7]. Apertando-se, umas quarenta pessoas podiam acomodar-se ali, sentadas sobre esteiras. Mas havia também uma sala de jantar, o triclinium, com oito ou nove banquetas sobre as quais se comia reclinado, à moda romana.

O que acontecia, pois, durante as reuniões comunitárias? Os costumes sociais e culturais dos coríntios não desapareceram do dia para a noite pelo fato de se terem convertido ao cristianismo. O proprietário da casa continuava a receber seus amigos cristãos na sala de jantar, ao passo que os demais, menos afortunados, se amontoavam no atrium. A comida que ele oferecia, era, certamente, melhor e mais abundante do que as provisões trazidas pelas pessoas de condições mais modestas. Os mais ricos chegavam mais cedo e ocupavam os melhores lugares no triclinium, que era a  sala de jantar. Os trabalhadores ou escravos chegavam somente quando haviam terminado o trabalho, ou seja, bem mais tarde, e ficavam no atrium, que era o pátio central das casas dos ricos. Nestas condições materiais aconteciam a Ceia eucarística que acabava traindo o sentido mais profundo do evangelho: a partilha. Não apenas egoísmos pessoais, mas estruturas culturais, econômicas e políticas abriam espaço para a infidelidade ao espírito original da Ceia proposta por Jesus Cristo.

 

13) Fechando a cortina


        Enfim, para compreender bem o sentido da Ceia eucarística descrita em  1Cor 11,17-34 é preciso levar em conta os bastidores da primeira carta do apóstolo Paulo à comunidade cristã de Corinto; observar os problemas que latejavam na comunidade, as diversas tendências de evangelização presente na comunidade, as diferenças sociais, culturais, econômicas e políticas que tornavam turbulenta a vida na comunidade; interpretar 1Cor 11,17-34 à luz de toda a carta também é imprescindível.

João Crisóstomo (347-407), em uma homilia sobre a primeira carta aos Coríntios, revela que o contexto de discriminação e opressão perdura. Ele diz assim:  O indigente está atormentado pela falta do necessário e se lamenta e levanta muitos acusadores e não deixa nenhuma rua sem percorrer, perseguido por sua miséria, sem ter nem onde passar a noite. Como conseguirá o infeliz dormir, atormentado pelo estômago, cercado pela fome, desprotegido quando vem o frio ou quando cai o aguaceiro? Você sai limpo de seu banho, vestindo roupas claras, cheio de satisfação e euforia e se dirige à esplêndida mesa que lhe foi posta. O outro, porém, transido de frio e morto de fome, dá voltas e mais voltas pela praça pública, com a cabeça baixa e estendendo as mãos. O infeliz já nem tem ânimo para se dirigir ao bem-alimentado e bem-descansado, pedindo-lhe o sustento necessário, e muitas vezes se retira coberto de insultos”.[8]

A música "Receber a comunhão de Padre Campos, do Rio Grande do Norte, expressa muito bem o que conseguimos captar sobre eucaristia a partir da 1 Cor 11,17-34 e dos bastidores da 1a Carta aos Coríntios:Receber a comunhão / Com este povo sofrido / É fazer a aliança / Com a causa do oprimido.

1. Celebrando a Eucaristia, a vida a gente consome / Ao lutar pela justiça, acabando com a fome / Pra que o outro seja gente, pra que ele tenha nome.

2. Celebrando a Eucaristia, com famintos e humilhados / Com o pobre lavrador, sem ter nada no roçado / É estar em comunhão com Jesus Crucificado.

3. Celebrar a Eucaristia é também ser torturado / É ser perseguido e preso, é ser marginalizado / Ser entregue aos tribunais, numa cruz pra ser pregado.

4. Celebrar a Eucaristia é a festa antecipada / De um novo povo que assume uma vida partilhada / É a força dos pequenos nesta grande caminhada.

5. Vai também ao nosso lado nesta Santa Eucaristia / A companheira de luta, a Santa Virgem Maria / Guardará no coração de seu povo a agonia!”[9]

           Por isso optamos pelo título COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ALDAZÁBAL, José, A Eucaristia, Trad. De Lúcia Mathilde Endlich Orth, Vozes, Petrópolis, 2002.

BARBAGLIO, Gioseppe, La prima lettera ai Corinzi, Col. Scritti delle origini Cristiane, Edizioni Dehoniane, Bologna, 2005.

COMBLIN, José, As cartas de Paulo, CEBI 81, São Leopoldo, 1994.

CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L., Em busca de Paulo, Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de deus ao Império Romano, Paulinas, São Paulo, 2007.

LEURIDAN, J.; MÚGICA, Guillermo, Por que a Igreja critica os ricos?, A justiça e a exploração segundo a tradição cristã.  Tradução José Américo de Assis Coutinho, Paulinas, São Paulo, 1983.

MAZZAROLO, Isidoro, A Eucaristia: Memorial da Nova Aliança, Paulus, São Paulo, 1999.

MURPHY-O’CONNOR, Jerome, PAULO,  Biografia crítica, Loyola, São Paulo, 2000.

QUESNEL, Michel, Paulo e as origens do Cristianismo, Paulinas, São Paulo, 2004.

SILVA, Valmor da, Paulo, apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus! Teologias bíblicas 10, Paulinas, São Paulo, 2005.

VV.AA., Sociologia das comunidades Paulinas, Estudos Bíblicos 25, 2a ed., Petrópolis, Vozes/Sinodal, 1996.

 

Frei Gilvander Luís Moreira

Rua Grão Mogol, 502 Carmo Sion

CEP: 30310-010   - BELO HORIZONTE – MG

e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br

www.gilvander.org.br

 

BH, 16/05/2009.



[1] Frei e padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma/Itália; Professor de Exegese e Teologia Bíblica do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), em Belo Horizonte/MG e no Seminário Teológico de Mariana/MG; Assessor de CEBs, CEBI, CPT, Via Campesina e SAB. Autor do livro COMPAIXÃO-MISERICÓRDIA, uma espiritualidade que humaniza, Ed. Paulinas, 1996, com tradução revista e aprofundada para o italiano sob o título COMPASSIONE-MISERICORDIA, una spiritualità che umaniza, Casa Editrice Vaticana, 2003. Autor do livro LUCAS E ATOS, uma teologia da História, Ed. Paulinas, São Paulo, 2004. Co-autor vários livros e autor de muitos artigos. E-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.br

 

[2] Assinado por Allaux, J. La Bible et son message 96 (outubro de 1975), pp. 12-13.

[3] “Eu vos escrevi em minha carta que não tivésseis relações com impudicos”.

[4] A expressão "temente a Deus" se refere a um gentio que simpatiza com a religião judaica, mas que não aceita a circuncisão e a conseqüente obrigação da Lei.

 

[5] Juvenal, Sátiras 14,18-22.

[6] Juvenal, Sátiras, 6,479-480.

[7] Veja como é antiga a sabedoria que ensina a reter a água da chuva e usá-la quando vier a precisão. No Brasil, inventada por um pedreiro baiano que morava em Sergipe, a cisterna caseira que recolhe a água que cai no telhado da casa está viabilizando o milagre da multiplicação das águas. Eis o projeto 1 milhão de cisterna que será âncora de um grande projeto de Convivência com o semi-árido. Por isso Dom Frei Luis Flávio Cappio, a Comissão Pastoral da Terra e outras 800 organizações populares se batem.

[8] Cf. o livro Por que a Igreja critica os ricos?, A justiça e a exploração segundo a tradição cristã, Paulus, São Paulo, 1983, pp. 64-65.

 

[9] Livro de Cantos do 11o Intereclesial das CEBs No embalo desse Canto, 19 a 23/07/2005, Ipatinga, Minas Gerais, p. 51 n. 150.